Coluna de Janaina Fellini na Musicoteca, inspirada na audição do podcast “Na Ponta da Agulha, de Jorge LZ, edição: Du Gomide” com colaboração na escrita com Cristiano Castilho. Um texto feito à duas mãos. O podcast inspirado você pode ouvir abaixo:
Noite passada tive um sonho: em frente a um cemitério, vi uma planta morrer. Molhei a terra onde estavam raízes quase secas daquela espécie desconhecida, e imediatamente um caule verde e delicado se levantou. Flores finas e brancas se abriram. Os frutos, algo entre amora e morangos, nasceram saudáveis e impecáveis. As imagens vivas e a agradável sensação de presenciar uma vida renascendo, gerou em mim, brevemente, a vontade de permanecer ali mesmo, naquele corredor onírico que vislumbra um final feliz.
Em 1578, o filósofo, teólogo e astrônomo Giordano Bruno teve um sonho: ele despertava no interior de uma esfera com estrelas, confinado. Foi até a extremidade da esfera, e tocou as estrelas. Sentiu um certo apavoramento. Em seguida, foi tomado por uma manifestação de coragem. Saiu da esfera, voou cada vez mais alto, subiu, subiu e, deparando-se com a sensação de que não havia limites nem acima, nem abaixo ou ao redor, ele pôde ver, sentir e experimentar o universo infinito. Como um observador, viu o sol e mais estrelas. Visitou galáxias e entendeu que existiam outros sistemas além do que se aceitava como verdade à época. Por defender ideias como esta, que lhe foi apresentada num sonho, Giordano Bruno foi queimado vivo pela Igreja. Isso aconteceu 10 anos antes de Galileu provar que sua visão sobre o mundo, baseada na experiência de um sonho e de várias outras hipóteses levantadas por pesquisadores anteriormente, como Copérnico, estava certa. A Terra não é o centro do universo. E nem os astros giram ao nosso redor.
Os povos indígenas valorizam o sonho e levam em consideração seu conteúdo em suas decisões cotidianas. De acordo com Kaká Werá, escritor e ambientalista brasileiro de origem tapuia, o sonho é um lugar onde se obtém conhecimento e informação. Esses recados vêm de seres que, no mundo físico, não são reconhecidos como capazes de se comunicar conosco – plantas, animais, rochas. O sonho regido pelo reino vegetal torna-se, nesse universo abstrato, um portal de comunicação dos reinos da natureza com a nossa alma, com o inconsciente individual e coletivo. O espírito da noite e da escuridão rege os elementos da terra, da água, do ar e do fogo, que trabalham na fronteira entre o sono e o sonho, liberando nossos processos psíquicos, emoções, preocupações, ansiedades e acontecimentos do nosso cotidiano, restaurando e nutrindo nosso organismo para a retomada da vida no dia seguinte. Alimentos como a mandioca e o guaraná foram sonhados pelos antigos tupis, antes de serem consumidos. Alguns remédios que estão presentes na cultura indígena também foram sonhados. Os Xavantes, antes de aceitarem a visita dos irmãos Villas-Bôas, sonharam que já era o tempo de receber algumas presenças que estariam preparadas para acessar o conhecimento do povo indígena. Nas culturas que preservam a sabedoria ancestral, não sonhar sinaliza uma desconexão interna e com a natureza. A personalidade e a essência da alma estariam em desencontro. Sonhar é sinal de consciência e o sonho é para ser cuidado, conhecido e desvendado.
Sidarta Ribeiro é um neurobiólogo brasileiro, diretor do Instituto do Cérebro, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Sua pesquisa traz o sonho sob a perspectiva ampliada de que sonhar é um fenômeno tão complexo, que se torna impossível explicá-lo por meio de um único paradigma. No seu livro “O Oráculo da Noite: a História e a Ciência do Sonho”, Sidarta reúne uma narrativa que atravessa o tempo e os níveis de organização da matéria, sociedades e culturas. A tese é de que o conjunto de múltiplos saberes agregados ao longo dos últimos 300 mil anos formam uma base que valide todo esse conhecimento interdisciplinar, como partes uns dos outros. Uma espécie de nuvem de sonhos e sonhadores onde toda a sabedoria é validada e acolhida, de acordo com as suas diretrizes no caso da ciência, ou das tradições, no caso da sabedoria indígena, ou ainda arquetípica para algumas linhas da psicologia. Neurociência, biologia, antropologia, psicologia, espiritualidade e ancestralidade tornam-se complementares nesta perspectiva, e sinalizam para a importância de reintegrar os sonhos ao nosso cotidiano, como uma ferramenta oracular de criação do futuro e da própria realidade.
Ao longo do tempo, a civilização ocidental capitalista se fundou na realidade e abandonou o sonho. O ato de narrar sonhos ao redor de uma fogueira, de compartilhar o conteúdo desse universo paralelo e atribuir a ele a função de promover novas perspectivas em comunidade acompanhou, segundo Sidarta Ribeiro, mais de um bilhão de noites da humanidade. Mas hoje se tornou um farol abandonado.
Quando ouvi o novo trabalho do músico, compositor e produtor Du Gomide, o álbum “Vela Acesa”, me perguntei se, ao propor uma travessia onírica, mística, profética, espiritual, reflexiva, otimista e dançante, Du teria, de alguma forma, atravessado os níveis de organização da matéria, e assim, acessado nesse espaço onírico o material para tornar possíveis as perspectivas e histórias narradas nas 8 faixas do disco. Sem dúvida, é para ser ouvido na quarentena. Uma vela acesa, um farol reativado para repensar a sociedade, as escolhas coletivas e individuais, para incluir alguma prática espiritual ou de conexão na rotina. Para amar e romantizar um pouco. Afinal, merecemos algum descanso mesmo que sob o conforto da ilusão, e, sobretudo, para deixar chegar algum sorriso livre, pelo simples fato de ouvir uma música e por ela ser levado a um estado de sonho ou de suspensão da realidade.
Este é o segundo disco solo de Du, músico muito requisitado por estas bandas. Em relação ao primeiro, “All In”, de 2014, este trabalho é mais abrasileirado, sedutor e profundo. O processo onírico proposto por Du Gomide começa com a sugestiva “Altar Nativo”, precedida por sons de pássaros. É uma reza moderna e naturalista. A faixa-título esbanja suingue e mostra o melhor da voz leniente de Du, que arma seu altar em definitivo e nos convida a dançar no escuro – ouça a mata chamando. “Cai Rei, Cai Rainha” é o futuro visto pela luneta do sonho. “Nos mantemos de pé”, canta ele. “O hoje é só o que temos e não vamos temer o futuro/que por mais que esteja escuro/ tem muita estrada pela frente”.
Com participações de Bernardo Bravo, Tuyo, Bianca Rocha e Iana Rocha, vozes sonhadoras, refrões poéticos e melodias sinestésicas, “Vela Acesa” estende sua ponte para possibilitar uma travessia mais leve, nestes tempos suspensos e inéditos, em que a realidade alguns dias parece sonho, e em vários outros, pesadelo. Se o cérebro reverbera informações e memórias do passado para simular o nosso futuro, pegue sua melhor roupa de sonhar, escolha um lugar gostoso, incenso, vela, cobertor – se você estiver em Curitiba – e ouça.
Aliás, o que você tem sonhado nesta quarentena? Coluna de: Janaina Fellini Colaboração na escrita e autoria: Cristiano Castilho Colaboração de conteúdo: Jorge LZ Foto: Cisco Vasque
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