Ao longo da vida, uma mulher atravessa, em média, 450 ciclos menstruais. Se ela usar absorventes descartáveis a cada período, a soma total chega a 12 mil e equivale a 180 kg de matéria utilizada uma única vez, sem possibilidade de reaproveitamento. Cada absorvente destes leva 500 anos para se decompor. O primeiro absorvente descartável foi lançado em 1930. Significa que ele ainda não completou seu primeiro centenário, e está perambulando por algum lugar da Terra. Seguirá sua trajetória pelos próximos 400 anos, até finalizar o processo de reintegração total com a natureza.
Sem sucesso, 16 anos após o lançamento do primeiro absorvente descartável, a marca Kotex fez uma parceria com a Disney, para lançar a animação “A História da Menstruação”, primeiro a usar a palavra vagina e exibido nas aulas do ensino médio dos EUA até a década de 60.
Mulheres que chegaram ao mundo antes de 1930 usavam os famosos paninhos – no diminutivo, porque tudo que diz respeito à menstruação, para ser dito, ainda precisa de uma maquiadinha. O assunto é um grande tabu, especialmente nos países mais tradicionais. Uma pesquisa realizada pela Sempre Livre em parceria com a KYRA Pesquisa & Consultoria, entrevistou 1.500 mulheres, de 14 a 24 anos, em cinco países: Brasil, Índia, África do Sul, Filipinas e Argentina. No recorte Brasil: 52% das mulheres afirmaram que sabiam muito pouco ou nada sobre menstruação quando tiveram a menarca; 49% das garotas se sentem incomodadas durante o período menstrual e aliviadas após o término dele; além disso, 33% não saíam de casa e 49% perdiam aulas por causa da menstruação. E mais: 39% das mulheres afirmaram que ao pedir um absorvente emprestado, o fazem como se fosse um segredo para tentar esconder que estão no período menstrual.
Na década de 60, junto com o movimento da contracultura, surgiu o anticoncepcional, e a leitura sociocultural desse advento foi tida como libertadora no contexto em que ela estava à época, inserida. Nesse processo, toda sabedoria conectada à natureza selvagem da mulher, foi gentilmente estimulada a desaparecer. Invalidada e esquecida homeopaticamente pela sociedade, pelos corpos, pela sensibilidade feminina. Mecanizamos o corpo feminino e reduzimos o período menstrual a uma ação biológica controlável, e ignoramos informações sobre o funcionamento cíclico do nosso próprio corpo.
Nos últimos anos, porém, as mulheres têm se movimentado em direção a uma retomada destes saberes. Assuntos como ginecologia natural, círculos femininos, mandala lunar e vaporização do útero são parte do nosso Zeitgeist, acompanhados de um convite não para cancelar a medicina alopática, ou negar os recursos que ela oferece, mas para integrá-la aos conhecimentos ancestrais e à práticas ritualísticas que dão conta de um feminino consciente, autônomo, intuitivo, selvagem e profundamente ligado à natureza.
“Onça” é o primeiro álbum da artista Alfamor, e aborda, em suas letras, temas contemporâneos e reflexões sobre ser mulher, autoconhecimento, política e espiritualidade. Nos arranjos, há a ancestralidade do tambor diluída em ritmos como o reggae, o rock e latinidades, tudo sob a supervisão da influência pop contemporânea. O álbum tem produção assinada por Saulo Duarte, parceiro de Alfamor em todas as composições, e conta com participações especiais como a da banda argentina Perotá Chingó, Mãeana e Mateus Aleluia.
Vale a pena destacar a faixa “Babylon”, uma espécie de manifesto suingado, cheio de mensagens sutis sobre a liberdade feminina e a luta contra o patriarcado. A bem-vinda (e paradoxal?) “Semente” foi escrita em 2018, no dia da eleição daquele que não se comove com a natureza, daquele que estranha a arte, daquele que usa a religião como adereço político, daquele que se sente ofendido com a ciência.
Alfamor se diz polimorfa, e suas diversas formas manifestas incluem a música, o desenho, a tatuagem, a escrita. Seu universo parte de uma sabedoria intuitiva para revelar aos poucos, variados convites subjetivos e metafóricos, capazes de esclarecer sob a luz da lua cheia, temas que dizem respeito ao universo feminino. É o diálogo que o álbum “Onça” deixa em forma de canção. Sete faixas para pensar o feminino de agora e repensar em tempo a relação com nossos corpos-morada, com nossas sementes sagradas, nossas entradas batidas na palma Paô. Para o solo feminino, todo chão é fogo.
Feito à Mão é uma parceria da Musicoteca com o Programa Na Ponta da Agulha. Escrito por Janaina Fellini e Cristiano Castilho.
Feito à Mão indica:
TED TALKS – A Terra é uma mulher, e o meu útero, o universo
– Eu sangro todos os meses
– Why can’t we talk about periods?
FILMES E DOCUMENTÁRIOS: – Absorvendo o Tabu – Pad Man
LIVROS – A Ciranda das Mulheres Sábias (Clarissa Pinkóla Estés) – Seu Sangue é Ouro (Lara Owen) – Lua Vermelha (Miranda Gray) – O Anuário da Grande Mãe (Mirella Faur)
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