Mostrando que a Cidade Maravilhosa não era apenas aquele manjado cartão postal ensolarado, o grupo carioca Black Future criou um dos discos mais inquietantes lançados em terras tupiniquins e que segue atual, mesmo tendo saído em 1988 - Eu sou o Rio.
As cabeças pensantes do grupo - Mario "Satanésio" Bandeira e Tantão - criaram um verdadeiro bestiário da alma carioca que transitava no submundo de lugares como a Lapa e a Galeria Alaska. Tentando explicar (o inexplicável), dá para dizer que Eu sou o Rio é um mistura de pós punk inglês, krautrorock, Talking Heads (da estranheza de músicas como I Zimbra, do Fear of music), samba, concretismo, Madame Satã e os morros cariocas… tudo isso envolvido por uma bruma lisérgica. Os malandros, os travestis, o caos e a loucura da grande cidade sobrepõem-se o easy going dos surfistas, das gatinhas, da galera da malhação e dos cidadãos de bem. No nights, Reflexão, Piada, Teatro de horror e a clássica faixa título são músicas que ironizam as instituições tradicionais: família, religião e estado e destilam desprezo pelo que é padronizado.
Cultuado e disputado a tapa nos dias de hoje, o LP saiu pelo selo Plug, que era um braço da gravadora BMG dedicado ao indie da época, abarcando trabalhos diversos, como De Falla, Violeta de Outono e o fundamental Picassos Falsos, entre outros. Na época de seu lançamento, o disco vendeu pouco e foi muito mal trabalhado pela gravadora. Completando a equação, o Black Future estava muito à frente de seu tempo e, por isso, um tanto quanto incompreendido. O público, que era ávido pelo pop direto, teve dificuldade com a trilha sonora proposta pelo grupo para um Rio de Janeiro caótico e apocalíptico.
Ao lado de Satanésio e Tantão, estavam Edinho, Olmar Jr. e Lui (figura conhecida e querida, que acabou virando nome de disco do Paralamas - O passo do Lui). Eu sou o Rio contou com participações estelares: Alex Antunes (Akira S. & As Garotas Que Erraram), Biba e Edu K (ambos do De Falla), Chacal, Edgar Scandurra (Ira!), Paulo Miklos (Titãs), Ronaldo Pereira (Finis Africae), Sartori (conforme o encarte, o pianista e ala no basquete, foi cedido gentilmente pelo Club de Regatas Vasco da Gama!) e Thomas Pappon (Fellini), que também foi o responsável pela produção.
Único registro feito pelo Black Future, Eu sou o Rio, que nunca foi reeditado (nem em CD), é mais que um disco, é uma obra de arte com toda amplitude que isso pode significar. Impossível passar indiferente por ele, já que é provocativo, é dedo na ferida, é nervo exposto.
O Black Future criou em 1988 um instantâneo com as contradições da Cidade Maravilhosa… passados 31 anos, os versos finais da música título continuam a nos assombrar:
… O Rio do desespero e da maldade
O Rio da mediocridade
O Rio da falta de sonhos
O Rio, o Rio, o Rio...
Esta publicação é a uma contribuição do NA PONTA DA AGULHA para o site KURUMA'TÁ.
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