Feito à Mão inspirada no álbum Aqui Deus Andou, de Beto Villares no podcast “Na Ponta da Agulha”.
Esse texto foi concebido dentro de um ônibus, em uma poltrona que eu rezei (é verdade) para que ninguém sentasse ao lado e que não estivesse contaminada. A madrugada parecia vivificar o que na minha adolescência seria uma possível metáfora das histórias de George Orwell ou de Aldous Huxley, hoje seria um episódio de Black Mirror, e, para qualquer tempo, seria a experiência da humanidade prenunciada pelo escritor português José Saramago em sua obra Ensaio sobre a Cegueira. Dois dias depois da Organização Mundial de Saúde classificar o coronavírus como pandemia eu, já com a sensação de desespero interiorizada, voltava para a casa para iniciar a quarentena ao lado da família.
No ônibus, depois de acomodada, rezada e menos apavorada, ajustei os fones de ouvido e comecei a melhor das viagens: ouvir pela primeira vez um álbum e me deixar levar pelas sensações, soltando aos poucos o medo, a aflição e a insegurança, em parte reais, e em parte, criadas pela minha mente.
A imagem da capa do CD era o rosto do amigo e produtor do meu segundo álbum, Beto Villares. Que honra! A imagem, envolta por uma luz, responde ao equilíbrio perfeito da sombra. Li o título: Aqui Deus Andou. Olhei para o lado, poltrona vazia. Depois do corredor, uma pessoa de máscara. Em algum lugar lá do fundo, alguém tossindo. Foi no meio dessa cortina de caos que a trilha sonora cheia de paradoxos, extremos, poesia, dança e calmaria, atravessou a madrugada comigo e me levou a pensar e sentir a luz e a sombra, o céu e a terra, deus e o diabo, a dualidade humana, a cisão, as pontes, o equilíbrio, a casa.
Na primeira faixa do álbum, Abre a Casa, fui me conectando com a ideia de uma morada, um lugar para onde se pode ir descansar do lado de dentro. Essa onde estamos todos, toda a humanidade – pausa para pensar na dimensão disso – sendo obrigados, por um vírus, a entrar. Nas casas construídas também, mas ao nos despirmos do mundo de fora, entraremos cedo ou tarde, na nossa verdadeira morada, na qual apesar de nunca termos saído, raramente entramos. Paradoxal, não é mesmo? A casa onde mora nosso “eu”, onde está a nossa essência, a nossa consciência e também a falta dela. Essa onde guardamos nossas memórias, lembranças, emoções, padrões, o jeito como enxergamos e como nos relacionamos individualmente e com o mundo. A casa-corpo-coração-mente-espírito, do lado de dentro.
O livro “Viagem Extraordinária ao Centro do Cérebro”, explica como na visão da neurobiologia, nosso organismo se conecta para produzir emoções e ações a partir desse misterioso território ainda pouco mapeado, a que chamamos de cérebro. Pois bem, se agora eu abrisse essa casa (do cérebro) e tivesse tickets – com bancos de álcool gel, é claro – para viajar por dentro de mim mesma, não tardaria a encontrar respiros de descanso dividindo espaço com uma natureza dual e cheia de conflitos. Assim como a luz e a sombra na capa do CD, assim como quando no dia-a-dia me deparo com contradições a respeito do que sinto e penso, do que quero sentir e quero pensar. Algo como quero, mas não quero, vou, mas volto, siiiiim, só que não. Paradoxal e subjetivo, como se parte de mim quisesse muito algo, enquanto outra parte também minha, com a mesma intensidade, não quisesse de jeito nenhum. Ao final da batalha, vence quem está mais forte naquele momento. Ou seja, eu mesma, me torno refém das minhas vontades e pensamentos, e ajo às vezes de acordo com o que quero e, às vezes, com o que não quero.
Jean-Didier Vincent, autor do livro, atribui ao cérebro essa dinâmica, e defende a teoria de que a alma está no cérebro e de que um não existe sem o outro. Embora não compactue com o conceito de dualidade, o autor admite que paradoxos existam, e que são respostas a uma cadeia de estímulos conjuntos de emoções aprendidas e reproduzidas por caminhos neurais. A cientista Jill Bolte Taylor, que pesquisa o cérebro, teve um derrame e pôde estar no papel de observadora de si mesma enquanto o evento acontecia. Taylor usa sua própria história para contar na prática como o lado direito do cérebro humano está conectado com nossas experiências místicas e o esquerdo muito mais ligado à capacidade de agir racionalmente.
Em anatomia, quando nos referimos a um lado, usamos a palavra antímero. Ao invés de lado direito, antímero direito, por exemplo, e apesar da separação didática, o corpo é um sistema totalmente integrado. Os hemisférios direito e esquerdo do cérebro são separados por uma fissura profunda, ao mesmo tempo em que permanecem unidos por uma ponte chamada corpo caloso, cuja função é transferir informações de um lado para o outro, de forma harmônica. Aí já encontrei a explicação poética de cisão, ponte e equilíbrio. Nossa estrutura interna já guarda em si o conceito de separação (fissura) e a ponte (corpo caloso), temos tudo e nada. Luz e sombra contra ou a favor. Cada um faz a sua escolha.
Luz e sombra são metáforas da já velha conhecida dualidade da natureza humana. Sim e não, dentro e fora, branco e preto podem traduzir sensações internas bastante corriqueiras para alguns, ou possivelmente, muitos de nós. Na psicanálise, a dualidade diz respeito a batalha interna que permeia a existência. Não é possível estar o tempo todo em equilíbrio, já que somos feitos por camadas que se separam e se atravessam de forma desordenada e atemporal. Neste caso, o “eu” é um território que está sempre em conflito. Na estrutura psíquica, é impossível estar lado a lado consigo mesmo o tempo todo. Para chegar à luz é necessário atravessar a própria sombra. O caminho para a totalidade, nesse contexto, implica em olhar profundamente para as cisões.
Já os ensinamentos de Buda, apontam para uma estrutura onde nós somos, em essência, a totalidade. A prática meditativa é um caminho de volta para a verdadeira casa, onde o espaço de paz e concordância são presentes na maior parte do tempo. Meditando é possível dissolver a dualidade até tornar-se unidade, promovendo uma convivência harmônica em si mesmo, como a função do corpo caloso ao atravessar informações de um lado para o outro do cérebro sem conflito. A Monja Coen, que segue a tradição zen budista, explica que as práticas meditativas transformam a mente humana, e a meditação é uma ferramenta que guia o caminho da dualidade para a totalidade: “não há dentro nem fora. Tudo está em comunicação constante”.
Apesar das diferentes teorias e visões a respeito da natureza dual ou total do ser humano, há uma ponte, uma concordância harmônica, um corpo caloso, que atravessa a fissura conceitual: tornar a luz mais presente do que a sombra no cotidiano, depende exclusivamente da vontade individual. Não é possível que uma terceira força magicamente recolha nossas incertezas ou atue como mediadora dos conflitos. Não há viagem para fora. A sombra, num primeiro momento, diz daquilo que não se quer ver. Mas ao atravessá-la verdadeira e corajosamente, reconhecendo os mais rechaçados sentimentos como parte de si e da natureza humana, é que a luz pode se apresentar em seu imperfeito estado de equilíbrio.
Seja lá qual for o ticket escolhido para viajar nos cômodos da sua casa de dentro, o caminho precisa ser feito passo a passo, por você. E então um território de trajetos tortos, inconstante, sem garantias e ao mesmo tempo, conciso, brilhante e primoroso poderá ser mapeado, e o caminho, escolhido. Antímeros de um mesmo corpo. Um tour que vai das varandas mais floridas aos porões mais abandonados de si. Córtex, hipocampo, pineal, terceiro olho, seja lá o que for possibilita o mapeamento da geografia interna, onde transformamos nossas emoções, e as traduzimos em histórias para o mundo, somos território por onde deus, o universo, a magia, a força da vida, andou e anda. Na luz e na sombra. Termino mais essa incursão com a frase do escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu conto Os Teólogos: “todo homem é dois. E o verdadeiro é o outro”.
Você que chegou aqui, ao final desse texto brevemente conflituoso, dual, porém em busca da totalidade, separado por fissura, ligado por corpo caloso, receba esse doce e responda: dois amores é cisão ou ponte? A Mariana, dona de uma da confeitaria Petite Marie, onde em vários dias chuvosos e cinzentos, levei meu hipotálamo para ter uma sensação de saciedade, liberou a receita para nós. Merecemos!
Salve a receita em seus arquivos! ,-)
FEITO À MÃO INDICA
– Álbum Aqui Deus Andou, de Beto Villares:
Spotify
YouTube
– Dois amores da Confeitaria Petite Marie:
– Livro Viagem Extraordinária ao Centro do Cérebro (Jean-Didier Vincent).
– FICA EM CASA.
JANAINA FELLINI
Musicista, jornalista, terapeuta, sagitariana, água, calor e longas conversas em noites de vida e sonho. Meu trabalho é atravessar realidades. E delírios.
FEITO À MÃO
Os textos derivam inspirações a partir de trabalhos musicais. Não necessariamente expressam o pensamento ou a linha traçada pelo artista. Estas informações, você pode acessar ouvindo a entrevista do programa Na Ponta da Agulha, com apresentação de Jorge Lz.
AGRADEÇO à Raquel Bombieri por jogar luz nesse texto, quando eu, sem perceber, parei para descansar na minha própria sombra.
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