Este texto, quando escrito pela primeira vez, disse algo. Mas insistiu em agarrar-se à palavra exausta, na tentativa de coexistir. No seu segundo assentamento, disse mais, porque antes se apagou em luzes e subtraiu da escuridão o acender-se em palavra descansada, saudosa que estava de se madrugar.
Deitar no silêncio, imagino, deve ser o descanso da palavra. Quando exausta, ela escapa do mundo e, já na fenda do caminho, vai pendurando letra por letra, até tornar-se a própria aquietação, estando ao mesmo tempo, palavra e silêncio – ou palavra em silêncio.
No sonho vocabular, ir e voltar do som à quietude deveria ser como o ir e o voltar do dia para a noite. Simples, contínuo e natural. No entanto, quando a palavra se isenta da obrigação de significar, desesperada pelo encontro com a sua própria aporia e reivindicando seu direito de não lugar, são muitas as guaritas, vigilâncias, ralos, vãos, gritarias, protestos e colonizadores desenfreados na busca por preencher o espaço acordado como obrigatório do palavrear.
A saga da palavra não dita, também é a cortesia de acesso a infinitas pronúncias nascidas a partir do ato de não narrar. É no descanso do verbo de uma canção, por exemplo, que um instrumento musical toma para si o direito à solidão luminosa e a permissão para solar. Também é na ausência de vocábulo que uma narrativa torna-se livre, construindo moradas com refinados recursos de dissociação seguida de ressignificação – muitas vezes de distração – nos ouvidos por onde passa.
“Tempo sem Tempo” é o novo álbum da clarinetista, saxofonista, cantora e compositora Joana Queiroz. A canção que dá título ao trabalho, providencial, é uma releitura da composição de José Miguel Wisnik e Jorge Mautner. Clássicos como “Jóia”, de Caetano Veloso e “Seu Olhar” de Gilberto Gil, ganham texturas, suspensões, descansos, enquanto “Dois Litorais”, assinada por Mariá Portugal, diz desse prolongamento da palavra horizontalizada com o som instrumental. Alternando narrativas verbais e instrumentais desobrigadas da ocupação de seus lugares como principais ou coadjuvantes, a partida da palavra se alinha nas histórias contadas pelo movimento continuado do clarinete e complementadas pelas percussões, efeitos e recursos herdados da escola estrutural de Joana, a Itiberê Orquestra Família, junto com o seu trabalho recente no grupo QuartaBê. “Tempo sem Tempo” vai do jazz ao samba por caminhos inexatos, liquefeitos como nosso próprio tempo. O álbum foi lançado pelo selo YB e tem produção de Bruno Qual, irmão mais velho da artista. Participam também Sergio Krakowski, Domenico Lancellotti e Mariá Portugal.
Na atmosfera instrumental, aquífera e orgânica do disco, “O Barco” é quem navega em prolongamento fluido, como nas histórias de Amyr Klink. Na faixa “Memórias”, escorrem notas repetidas e incontidas, tanto quanto é o percurso do que é lembrado no sistema límbico – que também é o responsável pela linguagem – até o coração consciente.
Para conter palavra e, ao mesmo tempo, livrá-la da obrigação de dizer sozinha, “Tempo sem Tempo” oferece ao seu ouvinte a possibilidade de ser encontrado pelo verbo dito e não dito no ato ampliado e liberto de ouvir, descansar, silenciar, navegar, prolongar-se.
“Tempo sem Tempo” é o álbum que você ouve na segunda-feira, no Programa Na Ponta da Agulha, apresentado por Jorge Lz.
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