Se o quarto álbum da carreira do músico, engenheiro de som e produtor Thiago Nassif fosse uma cidade brasileira do presente, seria São Paulo. Com imensas camadas polirrítmicas, tecnologia da gringa, bossa, samba, funk, no wave, vozes suaves, coros atravessados, caos nos arredores e organização no núcleo repetidor da base, ouvi-lo é como caminhar pela Paulista.
Para viver a experiência de “Mente”, é recomendável um grau de estesia, um corpo capaz de se movimentar, um ouvido multidisciplinar, um organismo presente e ativo que metabolize rapidamente muitas referências, antes que a próxima faixa nos transporte a mais um grau de sensações intensas.
Se o quarto álbum do artista visual, cantor e compositor Thiago Nassif fosse uma cidade brasileira do futuro, seria uma ecovila com casas sustentáveis. Dessas construídas com calma, em harmonia com a natureza, revestidas de poesia lenta e solar. Planejado durante quatro anos, o próprio artista compara seu trabalho a uma construção arquitetônica, na qual primeiro estruturou a base, e depois chamou outros profissionais para preencher os espaços desenhados para “Mente”. Um longo tempo de experimentações e criações de paisagens desaceleradas, bem longe do passeio pela Paulista, bem perto da poesia solar.
Nesta outra camada do mesmo álbum, é preciso um ouvido desconstruído, uma estética fluida, abissal, crua. No encontro da camada mais sutil, “Cor” desestrutura palavra e poesia em queda livre no abismo entre o cosmopolita e o cru. “Feral Fox” traz Jimi Hendrix como personagem. “Voz Única, Foto sem Calcinha”, uma bossa atemporal e quase doce, tem participação de Ana Frango Elétrico, mas não se engane: é só uma cama macia para uma letra de voo rasante. A produção é do norte-americano Arto Lindsay, e isso faz muito sentido. O veterano músico e produtor passou a juventude em Garanhuns (PE) e acompanhou de muito perto o sacolejo que o movimento tropicalista deu na música (brasileira também), nos anos 70. Ele participa de algumas das dez faixas do disco, que tem músicas em português e em inglês, temas poéticos e caóticos, pós-realidade, política, e provocações contemporâneas. A pluralidade de “Mente” também se mostra nas participações, que elencam a já citada Ana Frango Elétrico e sua pós-Nova MPB, Vinicius Cantuária, Ricardo Dias Gomes, Jonas Sá, Donatinho, Pedro Sá, Vitor Araújo e Bruno di Lullo.
Este é um álbum de paisagens plurais, arquiteturas diversas, estranhezas e ousadias. Um som além do que se ouve, criado por uma mente em movimento. “Mente” é um álbum-espéculo do futuro e um dos mais bem produzidos trabalhos de 2020.
“Mente” marca a centésima edição do programa Na Ponta da Agulha, também de ousadia futurista, de arquitetura sonora em desconstrução, assinada pelo produtor e curador Jorge Lz, a quem desejamos, pelo menos, mais 100 anos de bons sons e aventuras musicais.
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