La Loba é a personagem que dá nome ao primeiro conto do livro “Mulheres que Correm com os Lobos”, da poeta e psicóloga norte-americana Clarissa Pinkola Estés. Ela, La Loba, também é conhecida como A Mulher dos Ossos, a Trapeira ou ainda a Mulher Lobo, e tem um único trabalho: caminhar em busca de ossos que são recolhidos e guardados em sua caverna. Quando, depois de algum tempo - desses que não tem medida em dias, meses ou anos - a cata rende a junção de um esqueleto inteiro, La Loba senta-se perto do fogo. E sabe o que ela faz? Canta.
Quando ouvi Roseane Santos pela primeira vez - ou Rose, como a chamamos aqui em Curitiba - contando sobre os registros que fez em cadernos ao longo dos anos, cadernos que permaneceram fechados até o momento em que ela se sentiu pronta para abri-los e mostrar seus escritos a outras pessoas, imediatamente pensei em La Loba. Na ocasião, Rose ocupava o centro de um grande palco rodeado por uma arena em uma tarde de calor insuportável. Eu estava à direita, recém-saída de um show desgostoso: desses em que o click encobre o retorno, alguém esquece a letra, a nota escapa pela tangente e a plateia parece absolutamente distante; e observava Rose ali, no centro do palco, com toda a sua grandeza. Dava para sentir no ar que algo significativo pulsaria e levaria à música independente um brio acentuado. Ao seu lado estava Luciano Faccini, um dos produtores do seu futuro álbum, e um dos responsáveis por ler nos cadernos agora abertos de Rose a poesia que se transformaria em música em no seu primeiro disco solo em 18 anos de carreira: “Fronteiriça”.
Então, depois de um pequeno discurso de agradecimento, Rose cantou a capella um trecho de uma música, e disse que a composição se abriu do seu caderno no mesmo momento em que ela percebeu que não precisaria mais carregar algumas dores do passado. Rose estava pronta para ser uma mulher do tempo de agora. Mesmo sem ter certeza de qual foi a canção cantada ali, ainda sinto nas entranhas aquela melodia dançando perto do fogo, como uma ideia subjacente, um vir a ser já reverberado em sua potência. Era o final do ano de 2018.
Agora, quem tem a boa sorte de ouvir o álbum “Fronteiriça”, e cartografar a multiplicidade de territórios que ele propõe em 11 faixas, pode retirar das prateleiras longitudinais do tempo um atlas sensível da música que Roseane Santos, gentil, corajosa e coletivamente, traçou.
A voz é única, a interpretação é única. Algum humor poético também preenche a estrada, e as muitas delicadezas são paisagens corriqueiras, distribuídas na geografia fronteiriça. As composições reúnem escritos da artista e parcerias com pessoas próximas como Luciano Faccini, Leonarda Glück, Ary Giordani, Francisco Mallmann, Bia Figueiredo e Ana Modesto. A produção musical foi feita em parceria com Leonardo Gumiero e Luciano Faccini. A arte é de Thalita Sejanes sobre fotografia de Pretícia Jerônimo e a produção executiva é de Moira Albuquerque. O trabalho conta ainda com André Garcia no violão, guitarra e arranjos-base, Gabriela Bruel na percussão, Daniel D’Alessandro na bateria, Victoria Vilandez no contrabaixo e Luciano Faccini no clarinete, violão, efeitos, ambientações, direção artística, junto com a própria Rose.
Entre a esperança de um acaso impossível na faixa “Pedras e Escritos”, um mecanismo imaginário de respiração metafórica no sufoco dos dias atuais em “Guelras”, personagens mágicos ou místicos como a sereia, ou mulher bruxa na “Valsa da Lua”, pequenas crônicas como “Pastel na Praça” ou “Lábia” aproximam a artista e suas parcerias da vida normal, rotineira, cotidiana. Quem segue o percurso pela estrada de “Fronteiriça” alcança o primeiro platô: a “Pequena Ladainha de Cura”. Toma mais um fôlego e desaba no colo forte e poroso de “Ancestralidade” - e daí para um descanso.
La Loba, à medida que canta para os ossos recolhidos de um esqueleto completo ao redor do fogo, vai reconstituindo a carne, as vísceras, a pele do animal. E se ela canta mais um pouco, o sangue começa a correr, e ele começa a respirar. Com mais um entoo, a vida ressurge e é capaz de habitar mais uma vez esse ser, que ao correr em disparada por estradas e vales, vai se transformando novamente em pessoa humana. Nesse caso, uma mulher. A caverna é o útero, que é e sempre será o gerador da vida. Os ossos são as histórias boas e ruins, que deixamos na cartografia do nosso mapa pessoal, ao longo do tempo. La Loba é a consciência, que se recupera quando resgatamos a nós mesmos e elaboramos nossas histórias reconstruídas em versos que aí, cada um e cada uma, vai compor, repor, escrever, guardar ou cantar. E correr em disparada na direção de novas fronteiras. Como Roseane Santos fez ao voltar para recolher seus ossos, juntar os melhores versos do caminho, reconstruir sua narrativa, reunir em sua caverna, ao redor do fogo aceso por suas próprias mãos, seus apoios pessoais e musicais, e assinar seu trabalho como compositora. Com o canto de Rose, “Fronteiriça” ganha vida. E vai correr pelo seu mundo até tornar-se o que for depois do vir a ser.
Fico pensando ainda: quantas cantoras guardam por aí seus cadernos fechados e que tamanho tem a prateleira longitudinal da validação vinda de um observador de fora? Qual é o tamanho necessário para a subida dos próprios pés à ponta, suficientes para alcançar a melodia do dizer dos ossos catados na fronteira das histórias da vida? Nesta subida, esses pés podem encontrar, ainda, apoio? Podem ir até olhos que leem além? Podem pulsar em corações generosos que andam a cata de versos, com a força de cantar sobre eles, e assim torná-los à vida como semente e terra, renascidas sempre e mais uma vez?
Fronteiriça é o álbum que você ouve na segunda-feira, no Programa Na Ponta da Agulha, apresentado por Jorge Lz.
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