São 18h31 do dia 3 de abril, e anoitece no outono pandêmico curitibano. A foto, sem filtro, registra este momento, em que a estação se manifesta pela primeira vez por aqui, soprando aquela brisa geladinha, movendo a macia presença da luz do sol, e, paradoxalmente, dando lugar a uma ponta de saudade do inverno que ainda está por vir.
Feito à Mão inspirada no álbum Em Pleno Verão, de Elis Regina no podcast “Na Ponta da Agulha”.
Daqui a dois meses, o sopro de vento gelado irá se dissolver em enganosas manhãs de sol. Estaremos então agradecendo pelo fim da pandemia? Este acontecimento forte e simbólico terá ou trará algum novo valor para a humanidade? Acredito que sim. E também que estaremos melhores em várias dimensões da existência. Tristes, talvez, pela imposição da mudança dos hábitos, das relações, do trabalho. Por tudo e todos que nos colocaram diante da perspectiva de mortes reais e simbólicas tão perto a cada dia. Daqui a 50 anos, contaremos essas histórias políticas, sociais, culturais, poéticas e trágicas, registradas para sempre em cada um de nós e na memória do mundo.
Este é um tempo divisor de águas. Um intervalo que nos propõe rever relações familiares e pessoais, ressignificar visões de mundo, valores sobre bem-estar, saúde, economia, vida e morte. Antes e depois. Pode ser uma ponte, pode ser uma cisão (que tal dar uma olhada no texto da edição passada?). Eros e Tânatos, ativos em campo, nos sopram em arrepios diários, a vida e a morte de nossos corpos, e o próprio fim de um tempo em si. Uma fenda listada nas dimensões entre o que foi e o que será da humanidade. Gênesis ou apocalipse?
Às 18h31 do dia 3 de abril de 1970, o Brasil era um país sob ditadura. O sopro da brisa era feito de censura de encontros, ideias, criações, imprensa, arte. Ela assombrava, ameaçadora, a vida real. Para Elis Regina, era o ano do lançamento do álbum que, até hoje, é considerado um divisor de águas na carreira da cantora. Em Pleno Verão, nascia como o sol de um dia diferente. A chegada de uma nova estação, a quarentena, a dúvida ou medo ressignificaram o trabalho de Elis Regina.
No oitavo álbum de sua carreira, Elis, que até então vinha resistindo a novas propostas sonoras que emergiam com o surgimento da Tropicália e da Jovem Guarda, traçou novos contornos com músicas de Jorge Ben, Caetano Veloso, Gilberto Gil, incluiu uma participação especial de Tim Maia na composição do próprio e se deixou levar pelas leis da impermanência. Abriu espaço para os novos ares, e mostrou em Verão Vermelho, uma espécie de pressentimento do que no início dos anos 2000, tornou-se um tipo de interpretação na qual a voz executa a mesma função de um instrumento, cantando melodias sem letra, ou percutindo células rítmicas que compõem camadas sonoras dentro da música. Em Pleno Verão é o resultado da sublimação da velha Elis Regina que surge reinventada em novos espaços de si e em conexão com as mudanças do universo musical ao qual pertencia. Ela foi capaz de enfrentar Eros e Tânatos dentro de si, para deixar morrer uma cantora que à época estava à beira de tornar-se parte de um inverno passado, para nascer, aos 25 anos de idade, como a maior estrela da música popular brasileira em seu pleno, vermelho e majestoso verão.
Para a psicanalista Maria Homem de Mello, a dualidade, essa divisão subjetiva que congela os verões mais ensolarados e derrete geleiras ancestrais, morrendo e nascendo incessantemente no espectro psíquico inconsciente, fica claro que estamos implicados na constante conquista do ciclo de vida, morte, vida: “Somos consciente e inconsciente, pulsão e linguagem, somático e psíquico, Eros e Tânatos. Como não transitar entre polos, sendo que é o conflito que nos move e nos aterroriza?”. Na mitologia grega, existem dois significados possíveis para Eros. Na psicanálise, a personagem representa o desejo como força vital, como o sumo que alimenta a vontade de viver. O professor Guilhermoso Wild explica:
Transitar entre polos não significa bater três vezes na madeira toda vez que se ouve, diz ou pensa sobre a morte como um acontecimento certo para todos e para si mesmo. Para efetivar uma caminhada que contemple o espaço da vida e da morte, real e simbólica, é preciso também ressignificar esse trânsito, essa passagem, esse rito, e inseri-la, a morte, como parte da existência presente e necessária, especialmente no plano simbólico.
No final da tarde de uma terça-feira qualquer, vesti uma blusa branca meia estação, pedi para um ex-namorado me acompanhar, e corajosamente fui assistir a uma sessão do cineclube da morte. A proposta do projeto é rodar um filme que trate do assunto e depois interagir, com perguntas e reflexões. Neste dia, o filme foi “A Partida”, de Yojiro Takita. O cineasta japonês nos oferece sua visão ritualística da morte como processo pertencente à vida. Dá valor ao fim porque sabemos de sua existência, e também porque temos esse privilégio, de poder fazer algo até lá. Tom Almeida, um dos criadores do cineclube e do movimento InFinito, é um ativista. Uma pessoa que dedica a vida para tratar da ressignificação da morte, este que é ainda um dos maiores tabus da humanidade – e a única certeza que todos nós temos (adoro esse clichê): vamos morrer um dia. Para Tom, criar espaços para falar sobre a morte, nos dá a possibilidade de acordar, sob novas cláusulas, a própria vida. “A morte é uma grande oportunidade para se pensar e se entender como ser humano finito. A partir do momento em que se torna possível aproximar-se da morte como algo que pode acontecer a qualquer momento, acontece a ponte para a reflexão sobre o que é importante na vida hoje. Onde quero trabalhar, perto de quem quero estar, como quero viver agora. É, em essência, um profundo trabalho de autoconhecimento. Falar sobre a morte não é só sobre dor, medo e angústia. É sobre amor, gratidão, pertencimento, conexão e espiritualidade. A morte não é o fim da vida, não é o oposto da vida. Ela faz parte. A morte está dentro da vida”.
Tânatos é o mensageiro da morte na mitologia grega. Guilhermoso Wild conta como essa personagem figura no cotidiano e representa a fantasia que cultivamos de poder supostamente, enganar a morte no momento da sua chegada.
O psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes criou o termo “Terra Dois”. Por meio deste conceito, expõe o contraste do que, segundo ele, representa a imensa mudança que estamos vivendo, especialmente nos últimos 30 anos, nos paradigmas dos laços sociais humanos. Tudo aquilo que um dia já foi verdade, hoje não é mais. “Estamos agora no tempo do homem sem bússola. Estamos em um novo planeta, não estamos dando conta e estamos usando remédios de épocas anteriores. Nem nascemos, nem passamos pelas fases da infância, adolescência, vida adulta, envelhecimento e morte como antigamente. As relações afetivas estão diferentes, as pessoas têm mais de uma profissão, não nos aposentamos mais. Tudo mudou.” De acordo com Forbes, na “Terra Um”, as relações eram verticais, a orientação era paterna, a verdade era estabelecida e inquestionável, o diálogo era mais presente, o amor tinha um formato estável e o futuro era uma projeção que pautava toda a vida no presente. Na “Terra Dois”, as relações são horizontais, as articulações são coletivas, o mundo é líquido, as certezas são temporárias, busca-se ressoar em vez de raciocinar, novas formas de amor são experimentadas e o presente nos é apresentado como invenção – e não projeção – do futuro passível de mudança a todo o instante.
Elis no Mapa Astral
FEITO À MÃO INDICA:
– Programa na Ponta da Agulha (link no início da matéria). – Álbum Em Pleno Verão (Elis Regina)
– Filme: A Partida, do japonês Yojiro Takita.
– Movimento InFinito: http://infinito.etc.br/
– Curso de Mitologia Grega com Guilhermoso Wild: @guilhermosowild no Instagram
– Maria Homem no youtube: https://www.youtube.com/channel/UCeT74ntD25ACU_fVfUWZzsg
JANAINA FELLINI Musicista, jornalista, terapeuta, sagitariana, água, calor e longas conversas em noites de vida e sonho. Meu trabalho é atravessar realidades. E delírios.
CRISTIANO CASTILHO Jornalista formado pela UFPR e pós-graduado em Jornalismo Literário pela ABJL. É autor do livro “Crônicas da Cidade Inventada e Outras Pequenas Histórias” (Arte & Letra, 2019). Entende a difusão cultural e a proposta de diálogo como possibilidades socialmente transformadoras.
FEITO À MÃO Os textos derivam inspirações a partir de trabalhos musicais. Não necessariamente expressam o pensamento ou a linha traçada pelo artista. Estas informações, você pode acessar ouvindo a entrevista do programa Na Ponta da Agulha, com apresentação de Jorge Lz.
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