COLUNA NA PONTA DA AGULHA #002
- napontadaagulha
- 21 de fev. de 2023
- 3 min de leitura
“DESCESE”, DE TORI
A GRANDE ARTE QUE VEM DE SERGIPE, O MENOR ESTADO DO BRASIL
Para além do “hype”, que parece nutrir-se do mais do mais do mesmo, a música brasileira segue encantando e dando sinais de criatividade em todos os cantos do país. Um destes cantos é Sergipe que, fazendo um recorte nos últimos 15 anos, tem alimentado o circuito independente com vários nomes, que impressionam pela variedade de estilos.
Dos ritmos ribeirinhos mesclados às batidas universais da Coutto Orquestra à ancestralidade afro-brasileira de Héloa; do vigor psicodélico da The Baggios à combinação de tradição e futurismo de Sandyalê; ou mesmo, das harmonias “mineiras” de Dami à exuberância das canções pop, ao mesmo tempo, misteriosas e oníricas de Patricia Polayne, são infindáveis os caminhos musicais que partem da menor capital do país. Além destes nomes, e apenas arranhando a superfície de um terreno fértil, podemos citar também Ananda Barreto, Anne Carol, o trabalho solo de Julico (integrante da The Baggios), Lau e Eu e as bandas Cidade Dormitório, Madame Javali, Plástico Lunar e Taco de Golfe. Assim, Sergipe tem revelado, a cada dia, novas possibilidades artísticas.

Dentre estas possibilidades, um nome merece bastante atenção: Tori. Cantora, compositora, instrumentista e cientista social, ela recém lançou, “Descese”, álbum dividido em dois EPs: “Lado A” e “Lado B”. Artista jovem, mas já com alguma bagagem, Tori tem em sua discografia o EP Akoya, lançado em 2016 e dois álbuns com a banda Ipásia: Ignatia, de 2019 e Voragem, de 2021.
O que se desenhava nesses trabalhos anteriores ganhou contornos poderosos em “Descese”. O álbum traz uma artista segura, criativa, com enorme maturidade em suas composições e na sua interpretação, além de um toque bastante autoral em seu violão. Em “Descese”, o discurso e as ideias harmônicas caminham de mãos dadas, criando um ambiente aconchegante e cheio de frescor. “Travessias maiores”, faixa que fecha o “Lado A”, é um bom exemplo da construção musical da Tori: uma canção pop repleta de sutilezas, como um encontro do que reconforta com o que surpreende.
Das 12 faixas, dez foram compostas pela Tori, sendo “Água viva” sobre um texto de Clarice Lispector, retirado do livro de mesmo nome; “Terceira margem” em parceria com Domenico Lancellotti e “Normose” em parceria com João Mário, que é o único autor das faixas “Dies irae” e “Minha dança”. O trio musical, formado por Bem Gil, Bruno Di Lullo e Domenico, foi responsável pela instrumentação e também pela produção. Sensíveis e atenciosos, os três deixaram Tori à vontade e souberam valorizar e também potencializar o talento da jovem artista, que ainda recebeu o reforço de algumas participações especiais, entre elas, o parceiro João Mário, Bruno Berle (jovem e talentoso artista alagoano), a excelente soprista Joana Queiroz e a dupla Dora Morelenbaum e Julia Mestre, integrantes da banda Bala Desejo.
Classificar o gênero do trabalho de Tori é tarefa desnecessária, uma vez que, sabiamente, ela se utiliza de várias vertentes para fazer música com “M” maiúsculo, mostrando que já passou da hora de se deixar de lado essa mania de colocar tudo em caixinhas… se tem um lugar onde a música de Tori deve estar é justamente no ouvido da audiência que preza por belezas e surpresas, que fogem do “hype” e cumprem a função de alimentar a alma. Neste sentido, “Descese” é mais um prato cheio. É um verdadeiro banquete.


Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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