"CARNE DE CAJU", DE MOMBOJÓ HOMENAGEM AO TRADICIONAL FUTURISMO DE ALCEU VALENÇA
Pernambuco sempre foi um estado que proveu a música popular brasileira com trabalhos fantásticos e que merecem exaltação eterna. A começar pelo “Rei do Baião”, Luiz Gonzaga, é fácil enfileirar uma turma que dispensa comentários e que atravessou o tempo encantando programas de rádio e tv, bailes, festas e festivais. Anastácia, Arnaud Rodrigues, Aurinha do Coco, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Lia de Itamaracá e Marinês dão as mãos a artistas de gerações posteriores, como Chico Science (que tocou fogo no país dando a partida no Manguebeat), além de Alessandra Leão, China, Dona Selma do Coco, Erasto Vasconcelos, Fred Zero Quatro, Flaira Ferro, Isaar, Junio Barreto, Lenine, Lirinha, Lula Côrtes, Lula Queiroga, Siba, Sofia Freire, Otto e Zé Manoel, só para citar alguns.
Mantendo e reverenciando a tradição da música de Pernambuco, a banda Mombojó, uma das mais importantes do cenário pós-manguebeat, homenageia, em Carne de caju, Alceu Valença, outro nome fundamental da música pernambucana e brasileira.
Formada em Recife, em 2001, a Mombojó hoje é composta por Felipe S. (voz e guitarra), Marcelo Machado (voz e guitarra), Chiquinho Moreira (teclados e sintetizador), Vicente Machado (bateria) e Missionário José (baixo, sintetizador). Na bagagem estão os álbuns Nadadenovo (2004), Homem espuma (2006), Amigo do tempo (2010), 11° aniversário (2013), Alexandre (2014) e Deságua (2020), além dos dois álbuns lançados com o projeto Modern Cosmology, que reúne a banda à Laetitia Sadier, fundadora do grupo franco-britânico Stereolab, uma das grandes influências da Mombojó: Summer long (2017) e What will you grow now? (2023).
Em Carne de caju, título extraído da letra de “Tropicana (morena tropicana)”, parceria do Alceu com Vicente Barreto e no álbum Cavalo de Pau (1982), a Mombojó regravou oito faixas, quase todas consideradas “lados b” do cantor e compositor pernambucano. Assim como Alceu, que não negava suas raízes, mas trazia novos elementos para a música que o influenciou, a banda dá um novo tratamento às composições, evidenciando a enorme qualidade e a pluralidade do pernambucano em seu ofício. O álbum abre com o hit “Estação da Luz”, que dá título ao disco lançado em 1985. Em consonância com a letra, a banda criou um arranjo que preserva o caráter festivo e quente da original, mas acrescenta experimentações típicas do próprio trabalho, com uma forte levada de teclados; “Amor que vai”, Maracatus, Batuques e Ladeiras (1994) e depois regravada em Ciranda Mourisca (2008), poderia tranquilamente ser uma composição da Mombojó, tamanha a similaridade da construção melódica do refrão. Na versão da banda, a parte percussiva apresenta uma agressividade maior, acompanhada pela levada da guitarra e dos teclados; “Romance da bela Inês, do álbum Leque moleque (1987), mantém a beleza da balada original e acrescenta um certo suingue, criando um ambiente ainda mais solar; “Tomara”, parceria do Alceu com Rubem Valença, lançada por Maria Bethânia em Maria Bethânia - 25 anos (1990) e regravada pelo Alceu em 7 desejos (1992), mantém a levada original, com toques de ijexá e acrescenta elementos elétricos e eletrônicos; “Chuvas de cajus”, também do Estação da luz, revela um lado mais pop do pernambucano; “Sino de ouro”, mais uma de Estação da luz, traz a participação de Marilia Parente, cantora e compositora pernambucana, que lançou o ótimo Meu céu, meu ar, meu chão & seus cacos de vidro (2019); “Como dois animais”, de Cavalo de pau (1982) e depois regravada em Sol e chuva (1997), um dos sucessos de Alceu, mantém a malemolência da original e ganha um reforço no arranjo de teclados; “Olinda”, lançada quase como uma oração em Estação da Luz e regravada com mais grandiosidade em Amigo da arte (2014), fecha com chave de ouro, com arranjo caprichado, que dá contornos mântricos à canção.
Alceu Valença é um artista que se mantém inquieto, desde o início da carreira, alargando os limites da tradição e não a deixando estacionar no passado. Criativo e dono de uma poética particular, mostrando-se autêntico e verdadeiro, estabeleceu uma relação de cumplicidade com um público que, de alguma forma, se sente representado em suas músicas.
O momento atual é bem propício ao nome de Alceu Valença. Além do excelente trabalho feito por Julio Moura no livro “Alceu Valença – pelas ruas que andei”, lançado no ano passado pela Cepe Editora, 2024 marca o cinquentenário de Molhado de suor, sua estreia solo e arrasadora. Botando ainda mais lenha na fogueira da exaltação ao cantor e compositor pernambucano, a banda Mombojó evidencia uma de suas principais influências e se mostra afinada ao espírito transformador de Alceu com Carne de caju. Tradição e futurismo de mãos dadas, mostrando a riqueza da música pernambucana e brasileira.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival Levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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