PERAMBULE, DE CLARA CASTRO
Memórias e reflexões estão no centro do terceiro álbum da artista mineira
Tomei conhecimento do trabalho da cantora, compositora e atriz Clara Castro, mineira de Barbacena, em 2018, quando ela lançou Caostrofobia, seu primeiro álbum, produzido por Rodrigo Campello. Ali, já dava para perceber um cuidado com o canto, com a composição e com a construção harmônica. MPB e suas múltiplas vertentes, um tanto de pop, algo de rock... Tudo isso arranjado de forma equilibrada e com muito bom gosto.
Porém, foi com Ana (primeiro nome da artista), álbum visual lançado em 2021 e produzido por Clara e Nathan Itaborahy, seu companheiro e parceiro, que meu interesse cresceu. Dirigido por Ana Banhatto, o registro ao vivo – com as faixas em takes únicos de voz e violão, e tendo como conceito o mergulho de Clara em suas memórias e no que a construiu como ser humano e como artista – trouxe o “desnudar” das canções, que, somado à revelação das questões internas da cantora, deixou mais evidente sua competência como compositora, além de revelar um amadurecimento no fazer musical, inclusive no canto. Aprofundando essa experiência sensorial, atrás de Clara foram projetadas imagens, que refletiam suas memórias, conectadas ao contexto de cada uma das canções.
Em Perambule, seu terceiro e recém-lançado álbum, a mineira dá um passo adiante, combinando o mergulho em seus arquivos e em suas memórias com a pesquisa de Nathan sobre o “som das coisas”. A mudança da dupla de Juiz de Fora (MG) para São Paulo (SP) também funcionou como ingrediente decisivo nessa construção. O álbum, produzido por Clara e seu parceiro, acabou por criar pontes entre a densidade da arte mineira e as arestas poéticas e sonoras características da maior metrópole da América do Sul.
Das dez canções que formam o repertório (todas compostas pela artista, sendo algumas em parceria), sete já faziam parte de Ana e receberam novos tratamentos, sendo elas: “Astronauta”, parceria com Douglas Poerner; “Fé na fé”; “Fome de gritar”, que nesta versão ganhou uma nova parte composta pela MC e poeta Laura Conceição; “Canções perdidas na calçada”, parceria com Renato Lapa; “Genesis”; “Hora de acordar”, parceria com Tata Rocha; e “A torre”, parceria com Laura Jannuzzi. Já as inéditas são: “Morro da Garça (vinheta do vô)”, parceria com Nathan e que traz a voz de Osvaldo, avô de Clara, nascido na pequena cidade mineira de Morro da Graça; “Outras notícias do Oriente”; e a faixa-título, “Perambule”.
A sonoridade do álbum
Além da refinada construção poética e conceitual desenvolvida por Clara e sua preciosa interpretação, outro elemento foi fundamental para que Perambule atingisse um excelente resultado: a sonoridade. Nathan Itaborahy é um artista talentoso, como é fácil comprovar nos álbuns Ferinas couraças (trilha sonora original do espetáculo do Grupo NUN) e Sentado no céu, ambos de 2020. Partindo das canções, Nathan criou bases e samples, que acabaram ganhando novas camadas quando foram arranjadas e executadas – por ele, na bateria, por Douglas Poerner, no baixo, e por Lucas Gonçalves (baixista da banda Maglore e com um trabalho solo de primeira linha), nas guitarras.
Alguns bons exemplos da sofisticação dos arranjos estão em “Fé e fé”, um jazzy blues potente, que, em determinado momento, é entrecortado por uma pegada disco funk, com destaque para o baixo suingado de Poerner; “Fome de gritar”, na qual, em meio a uma atmosfera eletrônica, a interpretação de Clara é valorizada pela sagaz utilização do silêncio, além da participação de Laura Conceição, com seus versos contundentes; “Hora de acordar”, primeiro single do álbum, que, se por um lado mantém a mesma estrutura de vozes da versão de Ana, por outro ganha uma levada ijexá, com pulsação eletrônica, que amplia a força da composição; “A torre”, que contou com a participação especial de Caetano Brasil no clarete e foi embalada por uma percussão eletrônica, a qual deu mais destaque para as variações da composição; e “Genesis”, que remete ao Clube da Esquina e aos Beatles, uma das composições mais interessantes, com uma letra belíssima, que fala de ancestralidade e, segundo Clara, foi escrita para sua mãe. Aqui, a voz da artista e seu violão abrem os caminhos até a entrada do restante da instrumentação, agora mais orgânica, em um arranjo solar e colorido.
Como se não bastasse Perambule ser um presente para os ouvidos, o álbum ainda se desdobra em uma parte visual, com instantâneos do cotidiano, captados na cidade de São Paulo, que revelam a poesia que nos cerca e a beleza de que não nos damos conta, uma vez que estamos ocupados em correr em direção ao final do dia. Anas Obaid foi responsável pela direção artística para as imagens das faixas “Fé na fé”, “Fome de gritar”, “Canções perdidas na calçada”, “Morro da Garça (vinheta do vô)”, “Hora de acordar”, “A torre” e “Genesis”.
Do ponto de vista musical, podemos dizer que Perambule traz o universo multifacetado de Caostrofobia e o quase minimalismo de Ana, aprofundados por uma experimentação, que é fruto do mergulho da sensível e talentosa Clara Castro em suas memórias, além de seu olhar atento ao que está em volta. Como um convite à desaceleração, o álbum nos leva a refletir sobre o que, de verdade, é importante; o que nos fez ser o que somos e que tipo de transformação nós queremos para o mundo.
Rico em sons e poesia, Perambule funciona como um espelho, colocando-nos frente a frente ao que somos e ao que queremos ser.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival Levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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