PRECE, DE LUIZA BRINA
Coragem e fé na busca de uma música grandiosa
Em 2012, no Geleia Moderna (programa que eu apresentava, na Rádio Roquette-Pinto, no Rio de Janeiro), recebi como convidado o cantor e compositor mineiro Luizga (Luiz Gabriel Lopes). Um dos assuntos que tratamos foi a riqueza e a constante renovação da música mineira. Impressionado com seu trabalho, teci elogios e ele, entre algumas indicações, enfatizou: “você precisa conhecer a Luiza Brina. Ela é maravilhosa!”. Fui conferir e ele estava coberto de razão. Naquele mesmo ano, Luiza foi a atração da edição de aniversário do programa, fazendo uma apresentação solo, ao vivo, no auditório da rádio.
Passados 12 anos, a cantora, compositora, multi-instrumentista e produtora mineira está lançado Prece, acrescentando mais uma joia em sua discografia, que é constituída por A toada vem é pelo vento (2011); Tão tá (2017); Tenho saudade mas já passou (2019); e A toada vem é pelo vento – Deluxe edition (2022).
Lançado pelo selo dobra discos, com patrocínio da Natura Musical, Prece é um álbum audacioso, em que Luiza apresenta 11 faixas, sendo 10 de sua autoria, algumas parcerias com Julia Branco, Vovô Bebê, Sérgio Pererê, Iara Rennó, Thiago Amud e Luizga; e um interlúdio, “Rainha Belinha entoa Velhos de Coroa”, de Sérgio Pererê. O álbum ainda se desdobra no documentário “A tecnologia da canção - investigações e conversas de Luiza Brina” (que foi lançado em junho de 2023 no cinema e na internet, dirigido por Vitor Souza Lima, idealizado e roteirizado pela Luiza e por Julianna Sá) e numa vide'oração (conceito desenvolvido por Julianna Sá, e dirigido por Virgínia Pitzer), no qual Luiza recria os arranjos de suas orações e os registra em vídeos, que são um misto de clipe e gravação musical.
Compostas desde 2010, as canções, chamadas de “Orações”, fazem jus ao termo, já que se apresentam como preces ao amor, à solidão, à natureza e à fé da artista fazer suas composições, buscando, nestes, o sagrado. O universo musical pode ser descrito como uma obra sinfônica “afro mineira” ou, melhor, afrobrasileira, que dialoga com a América Latina. Os ousados caminhos harmônicos, que se bifurcam para depois se reencontrarem, sempre de forma surpreendente, são desbravados por cordas, madeiras e metais em comunhão com a força da percussão, seja ela orgânica ou eletrônica, e fica difícil não estabelecer um paralelo com Coisas, do maestro Moacir Santos. Assim como Luiza batizou suas canções como “Oração 1, 2...”, Moacir as batizou como “Coisa 1, 2...”. A semelhança entre as duas obras se prolonga no que as fazem distintas: a criatividade e a personalidade de cada uma delas.
Luiza assina todos os arranjos, tanto para as percussões do músico chileno José Izquierdo, como para 22 instrumentos de uma orquestra composta por 19 mulheres, integrantes das Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e Orquestra Ouro Preto. A direção musical também está em suas mãos e a produção é dividida com Charles Tixier (conhecido por seu trabalho com as bandas Charlie e os Marretas e Holger, além da parceria com Luiza Lian). Músico e produtor de extrema competência, Charles também se encarrega das intervenções eletrônicas, demonstrando uma perfeita sintonia com Luiza e com o conceito do álbum, como, por exemplo, na faixa “Oração 18 (pra viver junto)”, em que sua base eletrônica potencializa o deslumbramento produzido pelo arranjo da orquestra, onde a sutileza da primeira parte dá lugar à grandiosidade da segunda, enfatizando o texto, que propõe o autoconhecimento para que amor a dois seja pleno.
Na sua proposta de novena, Luiza dialoga com outras personas artísticas. A cantora mexicana Silvana Estrada, está em “Oração 2”, composição em parceria com Julia Branco, que teve uma versão gravada no álbum Tão Tá; o interlúdio “Rainha Belinha entoa Velhos de Coroa”, de Sérgio Pererê, é cantado, à capela, pela mestre griô mineira Rainha Isabel Casimira, conhecida como Rainha Belinha, gravado em frente ao Terreiro 13 de maio, um terreiro de Congado. Este interlúdio leva à “Oração 13 (coração candongueiro)”, parceria com Sérgio Pererê. Luiza e Sérgio (artista mineiro impressionante!), dividem as vozes nesta faixa que tem como destaque a percussão comandada por José Izquierdo; Iara Rennó, super talentosa artista paulista, participa de “Oração 19 (oração pra Oxum), sua parceria com a Luiza, que traz um belo entrelaçar das flautas com a percussão, que é tocada para a Orixá dos rios, numa das faixas mais bonitas do álbum; “Oração 15 (oração à Cobra Grande)” é uma parceria com o carioca Thiago Amud, onde Luiza conta com a participação de Maurício Tizumba. Assim como estamos acompanhando a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, face à falta de cuidado com o meio ambiente, Minas Gerais, terra de Luiza, passou pelo mesmo descaso, que acabou gerando o desastre em Mariana e Brumadinho. A faixa celebra a lenda amazônica da Boiúna (Cobra Grande) e pede proteção aos rios; “Oração 16 (dios/adiós)”, traz a participação da cantora argentina LvRod (Lucía Rodríguez). Inspirada na obra “Os frutos da Terra”, do escritor francês André Gide, um texto poético que trata da relação com a matéria e com os elementos naturais, criando um entusiasmo pela vida. Através de uma melodia sublime, onde se destacam as cordas e os sopros dialogando com a percussão, as duas versam sobre a figura de deus, como um ser terreno, presente no que está vivo, e também sobre sua negação, que seria a morte.
Desde seu primeiro trabalho, em 2011, Luiza chamou a atenção pela exuberância de suas composições. Verdadeira ourives da canção (e não negando suas raízes musicais mineiras), acostumou-se a privilegiar as harmonias, trabalhando-as de forma sublime e sutil, fazendo disso uma das características principais de sua obra, junto à sua coragem de experimentar, correr riscos e, assim, não cair em armadilhas ou imposições plantadas pelo “lugar comum” que tomou conta da produção musical atual, a propósito, como é bem-dito nos versos de “Oração 17 (risco)”, parceria com Luizga:
“... coragem faz a luz crescer... arriscar, fazer o risco, percorrer, correr o risco...”
Não é por acaso que Prece, um dos álbuns mais impressionantes dos últimos anos, alça Luiza ao ponto mais alto de sua trajetória até este momento, reafirmando sua enorme importância no cenário musical contemporâneo.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival Levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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