“ME CHAMA DE GATO QUE EU SOU SUA”, DE ANA FRANGO ELÉTRICO
AS MARAVILHAS DE UMA MÚSICA QUE EXTRAPOLA GÊNEROS
Desde 2018, quando lançou Mormaço queima, Ana Frango Elétrico, cantora, compositora, instrumentista, produtora, artista visual e escritora, deixou claro que não era apenas mais uma pessoa na multidão. Com texto afiado e debochado, canções que fugiam do lugar comum, instrumentação criativa, senso estético apurado e um certo ar naive tropicalista, Ana dava seus primeiros passos com firmeza e bastante jogo de cintura, dividindo a produção do álbum com Guilherme Lirio, Gustavo Benjão, Marcelo Callado e Thiago Nassif.
No ano seguinte, aprofundando seu mergulho na produção, estabeleceu uma parceria com Martin Scian para lançar o ótimo Little electric chicken heart, onde o experimentalismo do álbum anterior deu lugar a uma pesquisa no universo musical, principalmente, dos anos 1950, de artistas como Nora Ney, Johnny Alf e Anita Oday, entre outras e outros. O mais interessante deste processo é constatar a maturidade alcançada pepor ela, sem que fossem perdidos o frescor e a criatividade, agora somados a arranjos mais elaborados e sofisticados. Não foi por acaso, que Little electric chicken heart foi indicado ao Grammy Latino, na categoria “Melhor Álbum de Rock ou Música Alternativa em Língua Portuguesa” e que Ana ganhou o prêmio de “Artista Revelação” entregue pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Além disso, ela caiu nas graças de Anthony Fantano, crítico de música estadunidense e do francês Giles Peterson, radialista, DJ e fundador das gravadoras britânicas Acid Jazz, Talkin’ Loud e Brownswood Recordings, o que acabou dando um impulso internacional a seu nome.
Com a chegada da pandemia, além de começar a desenhar o que viria a dar o tom de seu trabalho seguinte, com os singles “Mama planta baby” e “Mulher homem bicho”, Ana passou a se dedicar mais à produção, sendo a responsável pelos elogiados álbuns de estreia das bandas Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, com seu disco homônimo, lançado em 2021, e Bala Desejo, com Sim sim sim, lançado em 2022. Ainda teve tempo de lançar o livro Escoliose: paralelismo miúdo, que reúne poemas, gravuras e ilustrações feitos entre 2015 e 2019, fazer a foto da capa de No reino dos afetos, de Bruno Berle, em 2022, fazer a pós-produção de Música do esquecimento, segundo álbum de Sophia Chablau e Uma Enorme Perda Tempo e produzir Baby blue, segundo álbum de Julia Branco, ambos em 2023.
A experiência com os trabalhos de outros artistas deu a Ana ainda mais desenvoltura como produtora, o que acabou sendo fundamental para seu ponto alto até aqui, o novo e aclamado (com toda justiça!) Me chama de gato que eu sou sua, lançado no Brasil pelo selo Risco, na Inglaterra pelo Mr. Bongo e no Japão pela Think! Records, com um incrível design gráfico assinado por Maria Cau Levy.
Imersa no estúdio com os músicos que participaram do disco e com o que queria bem definido em sua cabeça, Ana conduziu o processo, misturando sonoridades dos anos 1970 e anos 1980, com pegada disco, soul, rock, pop e jazzy, sem que em momento algum o disco soasse datado. Muito pelo contrário! Me chama de gato que eu sou sua é, musicalmente, atualíssimo, assim como a temática queer que permeia as letras. O disco é sexual, sem cair nos clichês ultra desgastados do pop hypado, que tomou conta dos palcos, das plataformas digitais, dos blogs e rádios mainstream. Ana tira sarro de tudo isso e passa ao largo, distribuindo deboche, ironia e, principalmente, inteligência. As questões ligadas ao não-binarismo, aos gêneros e à sexualidade dialogam perfeitamente com a multiplicidade de influências musicais, fazendo deste o seu álbum mais multifacetado, porém o de maior unidade no resultado. O que nos mostra a tamanha sagacidade da artista do desenvolvimento conceitual, assim como na parte técnica.
Das dez faixas, duas são assinadas apenas pela Ana: Insista em mim e “Let’s go before again”; quatro, com parceiros diversos: “Dela”, com Joca e Pedro Amparo; “Nuvem vermelha”, com Marina Nemésio; “Coisa maluca”, com Vovô Bebê; e “Boy of Stranger Things”, com Alberto Continentino. As outras quatro são: “Electric fish”, parceria do Bruno Cosentino com Marcio Bulk e Sylvio Fraga; “Camelo azul”, do Victor Conduru; “Debaixo do pano”, da Sophia Chablau; e “Dr. Sabe Tudo”, de Jonas Sá e Rubinho Jacobina.
Para esta empreitada e com sua direção artística, Ana convocou nomes de altíssimo nível, que executaram com extrema competência suas ideias musicais, inclusive trazendo uma enorme contribuição. Na ficha técnica constam: Alberto Continentino, no baixo, Guilherme Lirio, na guitarra, Sérgio Machado, na bateria, Marcelo Costa, na percussão, Lux Ferreira, Wurlitzer e synth e Thomas Jagoda, no synth bass e synth pad. Marlon Sette, além do trombone, foi responsável pelos arranjos de metais, que tiveram Diogo Gomes, no trompete e Gilberto Pereira e Jorge Continentino, nos saxofones e flautas. Dora Morelenbaum, que ao lado de Calu, participou dos vocais, assinou os arranjos de cordas, que foram executadas por Luisa de Castro, Thiago Teixeira, Tomaz Soares e Ivan Scheinvar, nos violinos, Thais Ferreira e Daniel Silva, nos cellos e Felipe Ferreiara, na viola. Ainda participam Thomas Harres, no tamborim, Carla Rincon, no violino, Aline Gonçalves, no clarone, clarineta e flauta, Pablo carvalho, na percussão, Vovô Bebê, na flauta, Rodrigo Maré, na percussão e Joca, no vocal em “Dela”.
Com Me chama de gato que eu sou sua, Ana Frango Elétrico revisita sonoridades passadas do pop brasileiro e internacional e os atualiza, em um álbum que soa atemporal. Os temas abordados, por mais pessoais que sejam, algumas vezes até dolorosos, sinalizam questões que estão cada vez ganhando mais espaço e aqui são tratadas com leveza e a naturalidade de quem perrcebe, como diz um trecho de “Debaixo do pano”, que: “... abaixo do céu, tudo é chão e acima do chão tudo pode ser...”.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival Levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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