“TETEIN", DE IAN RAMIL
O REAL E O LÚDICO CONVIVENDO LADO A LADO
Lançando “Tetein”, seu terceiro álbum, Ian Ramil recebeu elogios do pernambucano Lenine e do uruguaio Jorge Drexler. Nada mais justo para o cantor, compositor e produtor gaúcho, ganhador do Grammy Latino de Melhor Disco de Rock, em 2016, com “Derivacivilização”, seu segundo álbum, lançado em 2015. Antes dele, Ian havia estreado com “Ian”, em 2014.
Nascido em Porto Alegre, Ian faz parte de uma família com bastante tradição na música, já que é filho do cantor e compositor Vitor Ramil e sobrinho da dupla Kleiton e Kledir. Assim como os trabalhos do pai e de seus tios possuem identidades próprias, Ian desenvolveu sua trajetória com muita personalidade, fazendo de sua música algo independente de corrente sanguínea.
Desde a estreia, dois pontos chamaram a atenção: a capacidade de criar boas canções e a visão atenta ao comportamento da sociedade. Com o passar do tempo e com a maturidade artística e pessoal, as canções de Ian foram ganhando novos contornos e sua veia pop recebeu pinceladas de experimentalismo. O discurso, por sua vez, passou a ser cada vez mais afiado e crítico, expondo de forma crua e ao mesmo tempo poética a degradação que foi tomando conta da humanidade e, principalmente, do país. Isso fica claro na faixa “Artigo 5”, do álbum “Derivacivilização”, onde Ian musicou o quinto artigo de nossa Constituição.
Após o lançamento de seu segundo álbum, o Brasil atravessou uma série de eventos calamitosos: um golpe de estado, a ascensão de uma direita doente e raivosa, que alçou ao poder um governo cruel e desconectado com as necessidades da população. Completando o quadro, uma pandemia matou cerca de 700 mil brasileiros e brasileiras. Em meio a tudo isso, Ian tornou-se pai e a chegada de, Nina, sua primeira filha, serviu de alento, trazendo luz às trevas e dando a partida no projeto “Tetein”.
Neste novo álbum, Ian deixou de lado as guitarras e a bateria que deram o tom de “Ian” e, principalmente, “Derivacivilização” e passou a trabalhar mais com os silêncios e os beats, além de aprofundar-se ainda mais nas experimentações. O álbum traz algumas paisagens sonoras, arranjos mais elaborados e repletos de dinâmicas interessantes, revestidos de texturas bem construídas e ricas em detalhes, como, por exemplo, o arranjo de cordas escrito por Pedro Dom para a faixa título. 11 das 12 canções foram escritas por Ian, sendo “Macho-Rey”, em parceria com Juliana Cortes (cantora e compositora paranaense, que teve “3”, seu terceiro álbum, produzido por Ian); “O mundo é meu país”, em parceria Luiz Gabriel Lopes (cantor e compositor mineiro); e “Lego efeito manada” e “Homem-bomba”, em parceria com Poty (cantor e compositor gaúcho). A única exceção é “Canção de Chapeuzinho Vermelho”, parceria entre Braguinha e Francisco Mignone, que aparece como vinheta cantada por Nina Ramil e que serve de introdução para “Macho-Rey”, aqui mais experimental e contundente do que a ótima versão gravada por Duda Brack, em “Caco de vidro”, seu segundo álbum.
Em 39 minutos, intensidade e leveza convivem de forma harmônica, criando espaço para aconchego e surpresa. A estranheza que envolve o repúdio ao machismo e a uma série de preconceitos de “Mil pares” é colocada lado a lado com a singeleza de “Bichinho”; “Cantiga de Nina”, canção de ninar, que é aberta por um solo de fagote, dialoga com a frieza da crítica à escravidão tecnológica de “Homem-bomba”.
Mais do que dicotômico, o mundo em que vivemos é cheio de nuances e possibilidades e isso aparece de forma muito orgânica em “Tetein”, que, em toda sua multiplicidade, apresenta uma unidade impressionante, consequência da produção caprichada feita pelo próprio Ian.
Excelente observador e cronista do entorno, ao mesmo tempo em que olha pra dentro si, buscando a melhor maneira de lidar com os desafios da vida na pós-modernidade, Ian Ramil pinta um retrato fiel da realidade concreta, sem deixar de abrir espaço para o lúdico e para a fluidez da poesia. Sendo um dos nomes mais criativos e talentosos da música popular brasileira contemporânea, na bem-sucedida empreitada de “Tetein”, Ian marca seu lugar de artista que é comprometido com a ARTE e que realmente importa, sem dar muita atenção para “tendências”, assim como ele mesmo diz em um dos versos da faixa título: “... nada de fake / foda-se o like / intimidade é bem maior...”.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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