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COLUNA NA PONTA DA AGULHA #004


“TENHO ACORDADO DENTRO DOS SONHOS”, DE JULIANO GAUCHE

O INCONSCIENTE COMO FERRAMENTA PARA LIDAR COM A REALIDADE


Assunto que intriga a humanidade, desde os tempos mais remotos, permeando, inclusive, a arte, o sonho, para alguns, é premonitório e para outros, apenas divagações sem muito sentido. Sigmund Freud, o criador da psicanálise, descreveu os sonhos como tentativas de disfarçar a realização de desejos reprimidos. Já André Breton, um dos fundadores do Surrealismo, lançou as bases deste movimento artístico a partir de uma livre interpretação dos escritos de Freud, entendendo que os sonhos seriam o lugar onde se é possível escapar de uma autocensura, possibilitando, assim, uma expressão artística sem amarras e que, por isso, se manifestava muitas vezes em imagens absurdas.


Em “Tenho acordado dentro dos sonhos”, quarto álbum e quinto trabalho de estúdio de Juliano Gauche, o artista mineiro/capixaba criou uma obra tendo o sonho como ponto de partida, mas buscando um diálogo com algo que, conceitualmente, se pode chamar de “sonho lúcido”. O termo foi criado, no início do século XX, pelo psiquiatra e escritor holandês Frederik Willems van Eeden e se refere à percepção consciente que uma pessoa tem quando está no mundo inconsciente. Esta pessoa, inclusive, consegue exercer um certo controle sobre o que está sonhando, além de, ao acordar, ter uma recordação nítida do episódio. As pessoas exercitam essa capacidade e são chamadas de onironautas (exploradoras do sonho). Esta ideia, que atrai psicólogos, místicos e artistas, bate perfeitamente com Juliano Gauche, que cita como influências trabalhos de artistas como Arthur Rimbaud, Clarice Lispector e Fernando Pessoa, nomes que, de alguma forma, tiveram a metafísica presente em suas obras. Ao olhar com lucidez para o que se passa em seu inconsciente, Juliano Gauche encontra ferramentas que servem como base para lidar com o cotidiano. Os sonhos, que muitas vezes são tratados como válvula de escape, passam a ter valor para a compreensão da realidade.





Gravado em São Paulo, em novembro de 2022, “Tenho acordado dentro dos sonhos” traz sete canções que foram compostas em Manguinhos, praia do litoral norte do Espírito Santo, durante o período de isolamento imposto pela pandemia do Coronavírus.


Em suas composições, Juliano Gauche, com muita sensibilidade e trazendo uma enorme carga imagética, valoriza a intensidade, ainda que de maneira sucinta, da mesma forma que consegue ser suave, mesmo quando é áspero e solar, quando é sombrio. Isto fica nítido no resultado do álbum, quando nos deparamos com os arranjos criados de maneira delicada e precisa por Gauche e Sérgio Benevenuto. Apoiadas em uma instrumentação quase minimalista, as canções ganharam a dimensão necessária para que a audiência penetre em um ambiente onírico, que em vários momentos é banhado pelo mar. Não por acaso, a capa e as fotos de divulgação mostram Juliano Gauche próximo ao mar e, em algumas delas, ele chega a estar imerso.


Além de imprimir sua voz suave e assertiva, Juliano Gauche se encarregou de guitarras, piano, e teclados, acompanhado por Sérgio Benevenuto, nas guitarras, sintetizador e teclados. Completaram a instrumentação Kaneo Ramos, no violão, Victor Bluhm, na bateria eletrônica, e Klaus Senna, no baixo, sintetizador, teclados e metalofone. A coesão dos músicos é impressionante, fazendo com que tudo soe quente e no devido lugar. O apuro na sonoridade contou o excelente trabalho de mixagem e masterização feito por Klaus Senna, que também foi responsável pela produção, ao lado de Gauche.

Duas faixas se destacam dentro das sete que compõem “Tenho acordado dentro dos sonhos”. Uma delas é “Ondas que acordam”, parceria de Gauche com André Travassos, da banda mineira, Moons, que discorre de forma cíclica, num instrumental mântrico, com Gauche, em português e Travassos, em inglês falando sobre pertencimento, encantamento e leveza. “Ondas que acordam” aparece mais duas vezes no álbum como bônus tracks. Uma delas, apenas com Juliano Gauche no vocal e, na outra, apenas com André Travassos. O outro destaque é “Nos cânticos de lá”, faixa onde o instrumental, alicerçado em uma batida com contornos pop, valoriza os silêncios, criando um ambiente solar, que abriga o desejo de seguir em frente após os revezes, em busca de dias melhores.


Seguro na sua construção poética e musical, em “Tenho acordado dentro dos sonhos” Juliano Gauche coloca mais um tijolo em uma obra que é pautada desde o início por um desenvolvimento conceitual extremamente cuidadoso, que utiliza arestas a seu favor, como quem aprende com as dificuldades. Ao mergulhar nos sonhos (o mar interior), Gauche encontra uma clareza que é transformada em canções que ajudam a simplificar a complexidade do que é viver. Como dizia o poeta Wally Salomão: “chega do papo furado que o sonho acabou... a vida é sonho!”.








Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz

Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto

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