"COMO UM BICHO VÊ”, DE ANNA VIS
A MÚLTIPLA ARTE DE UMA ARTISTA MÚLTIPLA
Poeta, compositora, instrumentista, cantora, sonoplasta, engenheira de som, além de astróloga... esta é a paulista Anna Vis que, em 2019, lançou Máquina orgânica, seu primeiro livro de poesias e agora, no início de março, lançou “Como um bicho vê”, seu primeiro álbum, com direção artística de Romulo Fróes.
“Como um bicho vê” teve seu ponto de partida quando, no início da pandemia de COVID-19, em 2020, Anna viu uma postagem do cantor e compositor Romulo Fróes pedindo que compositoras e compositores enviassem suas músicas para que ele colocasse letras e, assim, iniciassem novas parcerias. Dias depois de Anna enviar uma melodia, Romulo retornou com “Espantalho sem espelho” e um incentivo para que ela fizesse seu primeiro álbum.
Romulo Fróes, um dos principais nomes da música popular de São Paulo e do Brasil, é um artista que preza o “álbum” e o desenvolvimento conceitual, ainda que esse conceito surja naturalmente ao longo do processo. Com um trabalho solo consistente, que rendeu mais de uma dezena de álbuns, além dos lançados com a “Losango Cáqui”, sua primeira banda, com o “Passo Torto” e os dois divididos com César Lacerda e com Tiago Rosas, Romulo assumiu o posto de diretor artístico, na YB Music, sendo responsável por álbuns históricos, como é o caso do premiadíssimo “Mulher do fim do Mundo”, de Elza Soares. Em sua trajetória, ao lado de figuras como Clima, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Marcelo Cabral, Nuno Ramos, Rodrigo Campos e Thiago França, é nítida a criação de uma linguagem musical que se utiliza do samba de uma maneira poética, que atravessa a essência humana de forma crua, apesar de lírica, sem a preocupação em aparar arestas. Muito pelo contrário, estas arestas são fundamentais para a personalidade intensa e brilhante da obra. Essa linguagem transbordou do seu núcleo e banhou diversos outros trabalhos, como é o caso específico de “Como um bicho vê”, de Anna Vis.
Múltiplo, como sua criadora, o álbum reúne 12 canções, das quais, em dez delas, Anna se encarregou da música, enquanto as letras ficaram com Romulo Fróes (“Espantalho sem espelho”, “Aquela que teima”, “Estrangeira” e “Um moribundo”), Alice Coutinho (“Água com gás”), Clima (“Lá vou eu e nada é maior”, “De cara”, Mil noites” e “Calada”) e Morris (“Tribunal da rosa”). Nas duas faixas restantes, Anna foi responsável pelas letras e as músicas foram compostas por Juliana Perdigão (“Vitalina meia vida”) e Marcelo Cabral (“Eleito leitor”). O poema “Sem vacilação”, escrito pela Anna, foi dividido em nove partes e funciona como um fio, que costura as 12 canções.
O título, “Como um bicho vê”, saiu da faixa “Calada”, que traz na letra: “[...]Vi como um bicho vê / como é / sem vacilação[...]”. A frase, segundo Clima, o autor, fala sobre a forma como os bichos veem as coisas, encarando-as em seu estado, sem poder vacilar, pois não sabem o que elas são capazes de fazer. Esta ideia acabou transformando-se no conceito do álbum, que é bastante adequado à maneira como é o Brasil, um país em que a população precisa estar sempre alerta, pois, paradoxalmente, a anormalidade é vista como normalidade.
Se o texto é intenso, com uma certa concretude urbana, alternando, vez por outra, veemência e leveza e também tristeza e descontração, a parte musical segue na mesma direção, instigando a audiência a ficar em estado de alerta, assim como no conceito álbum, “sem vacilação”, para que o desfrute seja completo. Para isso, as canções, com suas melodias que fogem da obviedade, ganharam arranjos precisos, valorizados pela performance artística, que trabalhou muito bem andamentos e dinâmicas, realçados por um apuro técnico impressionante (chama a atenção a masterização e a mixagem feitas por Carlos “Cacá” Lima).
Os arranjos foram feitos por Marcelo Cabral e Maurício Takara, ao lado de Anna. Enquanto ela se ocupou da voz e do violão, Cabral se encarregou do baixo elétrico, synth bass e synths, e Takara, da bateria, percussões e synths. O álbum contou com as participações especiais de Ná Ozzetti, em “Mil noites”, Juçara Marçal, em “Tribunal da rosa”, Juliana Perdigão, em “Vitalina meia vida”, Clima, em “Calada” e Romulo Fróes, em “Um moribundo”. As nove partes do poema “Sem vacilação” ganharam paisagens sonoras criadas pelo artista, produtor e engenheiro de som, Mbé, que foi cirúrgico na construção de ambientes que ajudaram a amarrar tão bem o conceito de “Como um bicho vê”.
Levando-se em conta que, a cada dia que passa, fica mais claro o quanto a humanidade precisa rever sua postura diante do planeta e diante de si mesma, talvez, o melhor caminho a seguir seja uma reconexão com sua origem, através de uma reflexão cuidadosa, que a faça a voltar os trilhos. Uma observação interna, dando a devida atenção ao que somos e uma observação externa, entendendo o entorno e nos colocando como parte de um todo. A arte é uma excelente ferramenta para se chegar lá e trabalhos artísticos, que se multiplicam em beleza, inquietude, provocação e com a profundidade que encontramos em “Como um bicho vê”, merecem toda a atenção.
Coluna publicada no site Itaú Cultural por: Jorge Lz
Carioca, radialista, curador, pesquisador musical, produtor cultural e DJ. Produz e apresenta o programa semanal Na ponta da agulha, na Rádio Graviola, é curador do Festival Levada e integra o Radialivres, coletivo de radialistas do Brasil. Foi idealizador e curador do Festival BRio e do projeto Verão Musical no Castelinho, e produziu e apresentou os programas Geleia Moderna, Radar e Compacto, na Rádio Roquette-Pinto
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